UMA HISTÓRIA DE AMIZADE
Rolam os anos,
ano após ano e, às duas por três, damos connosco invadidos pelos cabelos
brancos trazidos, exactamente, pelos muitos anos que, entretanto, já rolaram. É,
então, chegada a hora para se rebuscar na memória e trazer à luz do dia episódios
da nossa vida que nos marcaram vincadamente a existência.
O – a meu ver –
extraordinário narrador que é o escritor chileno Luís Sepúlveda, escreveu num
dos seus contos: “os amigos não morrem simplesmente: morrem-nos, uma força
atroz mutila-nos da sua companhia e continuamos a viver com esse vazio entre os
ossos”. Não querendo eu meter a minha romba foice numa seara que não é minha,
apetece-me acrescentar que à medida que vamos sobrevivendo à força demoníaca da
morte que, de um modo inesperado, nos vai levando amigos e parentes, esses
vazios entre os ossos de que fala Luís Sepúlveda vão sendo preenchidos pelas
boas recordações que de todos eles nos ficaram indelevelmente gravadas na
memória. E foi para melhor definir o sobreviver dessas lembranças que – acho eu
– foi inventada a palavra saudade.
Foi ao pensar em
tudo isto que me ocorreu contar esta história de amizade.
Ao longo dos
muitos anos ao serviço do B.N.U., foi-me dado, a dado passo, conhecer no posto
médico o enfermeiro José Branco. Era por todos reconhecida a sua mais que
evidente simpatia, o seu trato lhano o seu jeito extrovertido e brincalhão com
que acolhia aquele ror de queixumes que por ali aportava todos os dias.
Lembro-me até de um certo dia me ter calhado a vez de lhe ir parar às mãos,
mercê de uma queda aparatosa sem graves consequências que não fossem as palmas
das mãos todas esfoladas em consequência da aterragem que fui forçado a fazer. Parece-me
ainda estar a vê-lo a esfregar-me denodadamente aquela carne viva, achava eu
que sem dó nem piedade, indiferente aos meus queixumes piegas, com os quais ele
brincava, explicando-me que as feridas tinham que ficar bem limpas e desinfectadas
sem o que podia resultar dali uma infecção dos diabos.
Para além dessas
visitas “forçadas” ao posto médico, eu costumava encontrar também o José Branco
durante as férias na Praia de Santa Cruz quando, ocasionalmente, os nossos
caminhos se cruzavam, mas para além dos cumprimentos usuais de cortesia as
nossas conversas limitavam-se a palavra de circunstância.
Já depois de
reformado, a certa altura, decidi comprar um apartamento naquela praia e, numa
das minhas idas iniciais ao prédio, quando vou a entrar dou de caras,
inesperadamente, com o Branco e a esposa que vinham a sair. Ficámos, assim,
todos a saber que, a partir daquele momento, éramos ali vizinhos.
Foi o início de
uma agradável convivência que, embora circunscrita aos períodos que por ali simultaneamente
permanecíamos, me permitiu conhecer melhor o Branco, inteirando-me da sua
personalidade e apercebendo-me de uma sua outra faceta que eu desconhecia, que
era a sua enorme paixão pelos livros e pela cultura em geral.
Os anos foram
correndo – não muito é certo – e por razões de saúde o casal passou a espaçar mais
a sua permanência naquele seu apartamento e eu, por razões diversas, acabei por
vender também o meu.
Expectante, lá compareci
no local e à hora que fora combinada onde, a dado momento ele surge sobraçando
um bonito embrulho em papel alusivo à época e que me entregou sorrindo. Porque
não esperava por aquela inusitada situação, fiquei sem palavras e limitei-me a
dizer um tanto encabulado que não vinha prevenido para lhe retribuir. Com
aquele seu ar brincalhão que tanto o caracterizava, ele retorquiu dizendo-me
que eu não tinha nada que retribuir, ele é que me vinha retribuir a minha
amizade e a oferta daquela minha “borrada”. Além disso, como lera e analisara os
meus escritos, aquele era o seu contributo para que escrevesse coisa de jeito.
Aberto o
embrulho, dou, surpreso, com um enorme cartapácio numa nova edição de 1937 de
uma obra editada em 1719, cuja primeira página aqui se reproduz.
O José Branco,
tal como muitos amigos que ao longo da vida fui perdendo, ocupa, agora, um dos
muitos vazios que já tenho entre os ossos, mas aquela prenda de Natal, com o
seu faceto simbolismo, ficou indelevelmente vincada no meu espírito.
De facto, os
amigos não morrem simplesmente. Encontramo-los a cada passo, em cada esquina, a
cada momento, sempre e quando a nossa memória no-los trás de volta.
MAIA PEREIRA
Lembro-me do amigo e enfermeiro Branco desde a década de sessenta, nos serviços clínicos. Era ele que nos aconselhava e encaminhava para os médicos depois de analisar as nossas mazelas físicas e psicológicas . Sempre bem disposto e brincalhão mais que um enfermeiro era um amigo.
ResponderEliminarAraujo
Ainda o conheci bem, o enfermeiro Branco. Muito simpatico, risonho, brincalhao.
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